“Não tens de viver com medo”, a mensagem de Marques’Almeida

O Antigo Matadouro Industrial do Porto foi palco de um espetáculo, que por acaso se fez de moda. As palavras fortes do início deram o mote para um desfile cheio de emoções e significados.

“O medo é algo diferente (…) esse medo é usado para intimidar, para atacar e para magoar as pessoas. (…) Como mudamos isso? Em primeiro lugar temos de nos desenhar a nós próprios, tens de decidir se estás preparado para sacrificar tudo se for necessário, para seres fiel a quem és. (…) Neste momento acredito que a única forma de combater o controlo são as comunidades, pequenas unidades de comunidades, pessoas que concordam o suficiente umas com as outras sobre a forma como vivem, que se apoiam, que partilham os seus recursos. (…) Pequenas unidades autónomas dedicadas a uma forma diferente de viver, que é sobre partilhar, generosidade, amor, compaixão, bondade, e todas as coisas que foram destruídas pelo capitalismo e totalitarismo. (…) Tu não tens de viver com medo, não tens de ter medo o tempo todo (….)”, foram estas algumas das palavras fortes que abriram o desfile de Marques’Almeida. Foi às escuras e sem qualquer modelo na passerelle que se ouviu este poderoso, e político, discurso com cerca de dois minutos.

«Este discurso é exatamente aquilo em que nós acreditamos. Achámos que era importante dar um bocadinho de silêncio no início do desfile para ouvir aquela mensagem, porque é uma mensagem que faz todo o sentido para nós», explica Paulo Almeida sobre o início do desfile. E na verdade não se ficaram só pelas palavras, a dupla Marques’Almeida – que sempre teve um forte sentido de comunidade – levou o conceito ainda mais longe ao convidar seis artistas e designers para se misturem com eles neste desfile.

A Mana.Terra trouxe os sacos em “patchwork” feitos à mão, Nani Campos, as jóias artesanais feitas a partir de material descontinuado, Ariev levou algumas das suas peças irreverentes feitas a partir de deadstock, Marcelo Almiscarado introduziu as suas criações como as peças com malmequeres de crochet. Marcaram ainda presença os tecidos artesanais de Tilo e as correntes feitas de lixo, de Rebeca, que além de terem sido um importante elemento visual, também foram um detalhe sonoro relevante.

«A pandemia trouxe muita gente a casa e trouxe-nos a nós também. Foi um processo, deste último ano e meio, perceber o que é que significava para nós voltar às raízes. Conhecer a geração nova, que está a fazer o que nós estávamos a fazer há dez anos, perceber o que é importante para eles e aprender com eles. Daí termos convidado estas pessoas para fazerem o desfile connosco», conta Marta Marques, depois do desfile. «Foi um processo de aprendizagem, nós ganhamos muito mais com isto do que, se calhar, eles ganharam connosco. Aprender aquilo que eles estão a fazer, a maneira como eles estão a pensar e como estão a encarar as suas áreas de trabalho e as suas vidas, foi mesmo muito enriquecedor», continua.

Se é verdade que as mãos da comunidade Marques’Almeida foram bem visíveis no desfile, também é verdade que a assinatura da dupla de designers, nunca se apagou. E esse é talvez o grande triunfo desta coleção que assinala os 10 anos da marca, existiu colaboração, aprendizagem e entreajuda, sem que o ADN da marca alguma vez tivesse sido posto em causa. Um feito que só se consegue quando se sabe exatamente quem somos e por onde queremos ir, sem medo de deixar entrar no nosso universo outros universos, que nos ajudem a pensar e a questionar.

O desfile abriu com blocos de cor, primeiro um vestido caicai cor-de-rosa, depois seguiu-se um amarelo, um preto, um laranja e um branco. Coordenados fluidos e de simplicidade aparente, que esconde a complexidade nas costuras diagonais e nas assimetrias. Da assinatura Marques’Almeida vimos ainda as camisas com punhos largos, os botões de mola, as argolas, os fechos, os folhos, os desfiados e as plumas. O destaque vai para os vestidos camisa com várias fileiras de botões de mola, o que permite uma enorme versatilidade, mas também para os sleepdresses com aberturas redondas e folhos, para as calças com plumas e o trabalho de tie dye presente em muitos coordenados.

No total foram 71 coordenados que provaram que até a peça mais simples, como um top de alças, pode ser cool. Ficou também provado mais uma vez que a moda quando é bem feita é para todos, e que não é preciso ser modelo para a mostrar. Para este desfile a dupla de criadores fez um casting aberto, o que resultou num desfile extremamente diverso e com muita atitude.

«Tivemos uma resposta louca ao casting. Uma resposta que nunca tivemos em termos de números, mas também em termos de diversidade, foi absolutamente incrível. As pessoas tiveram mesmo que se disponibilizar para uma indústria que muitas vezes não é muito amável com elas, e por isso foi importante para nós sermos (amáveis) e tentarmos abrir o maior espaço possível. Tivemos de dizer que não a muita gente, e esperamos fazer coisas com essas pessoas mais tarde», revela Marta Marques.

Promover a diversidade e ser um motor de mudança positiva é um dos ponto do manifesto M’A, que também tem uma parte dedicada à sustentabilidade. Esta coleção foi mais um passo neste caminho com uma coleção livre de materiais de origem petrolífera, as meshs e polyester reciclado, tencel e viscoses com certificação, malhas orgânicas e tingimentos feitos com desperdício ou certificados.

«Na questão da sustentabilidade há uma série de coisas que pensamos ser sustentável, mas depois existe uma causa efeito no fim da linha, que às vezes faz com que não sejam as melhores escolhas. Eu estou a tentar manter-me o mais alerta possível, para estar a aprender e a adaptar as coisas. Neste momento o nosso objetivo é não ter sintéticos, e se tivermos serem sempre reciclados, ou então fibras naturais biodegradáveis. Mas acima de tudo queremos roupa de qualidade que possa ser reutilizada», esclarece Paulo Almeida.

Esta foi uma celebração de uma década, que nos fez acreditar que o melhor ainda está por chegar.

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